terça-feira, novembro 27, 2012

É

É

Sem talento?
A voz do amigo, tranquila:
"A Bíblia já foi escrita".

É.

Pois é preciso que eu fale,
Que tu fales,
Que ele fale...
(Ou as pedras falarão?)

Até que seja encontrado
O tom,
A forma,
O conteúdo da Mensagem
De cada um de nós!

E aquela lágrima
- Que tremula constantemente
À beira dos cílios -
Finalmente escorra pelo rosto
E possa evaporar antes que chegue ao peito!

(ZSF/ SP - 01/09/2003)

segunda-feira, agosto 25, 2008

UM CONTO...

UM CONTO... PORQUE QUERO QUE SEJA UM CONTO

Mãe, quero falar com você, mas sem que minhas palavras se percam no espaço. Para ser assim, eu vou lhe escrever na forma de um conto. Vou lhe escrever um conto. Por isso, assim começo – porque é assim que se começam contos, desde sempre:
Mãe, era uma vez...
Era uma vez uma filha que sentiu uma saudade imensa de sua mãe e teve que parar de chorar para poder escrever. (E foi muito bom assim.)
Mas eu lhe conto, minha mãe, que uma filha (esta filha) foi enxugar a louça com um pano que pratos que você fez. E quando ela percebeu, não estava enxugando, mas acariciando o prato com o pano bordado de ponto haste e bainha de crochê. Nenhuma obra de arte, mas um trabalho de sua mão que nem ao menos poderá guiar as de suas bisnetas para que elas o reproduzam. Como é comovente um pano de prato bordado! E de se pensar que eu dei diversos para desocupar espaço na gaveta! O que acontecerá com aqueles que ainda tenho e não vou por em uso porque quero guardar como lembrança? Então eu me lembro como foi desocupar seus armários e gavetas quando você morreu.
(Que farão com minhas coisas quando chegar a minha vez – que nem longe deve estar?)
Mas, minha mãe, será que estou falando com você ou estou falando sozinha? Uns dizem uma coisa, outros dizem outra. Não costumo visitar seu túmulo, a não ser por necessidade administrativa. Se você continua existindo de alguma forma, é

aterrorizante imaginar que você esteja lá. Não quero acreditar nisso. Mas tenho a impressão de ser criticada por não lhe levar flores.
Tenho uma idéia: podemos marcar um encontro no seu túmulo e conversar alguns minutos – só para agradar os outros.
Está vendo, mãe, esta filha continua perdida no mundo do mistério da morte. Por isso continua chorando depois de tanto tempo.
Mas para isto ser um conto, tenho que contar alguma coisa: já lhe falei da minha saudade, da minha angústia diante do mistério. Falta contar algum fato objetivo, acho.
Pois bem, conto-lhe o que aconteceu com o homem que a senhora amou aos 89 anos: ele ficou viúvo.Vocês poderiam ter se casado e continuar morando, talvez, aqui em casa. Nesta casa tão grande e agora tão vazia. Tenho lutado para que ela fique com vida: visita dos filhos, netos... que falta fazem amigos que a gente não soube cultivar. Posso falar um pouco de solidão, também.
Mãe, posso continuar contando dos aniversários, dos meus poucos passeios, das conversas a seu respeito.
Mas acho que isto chega para um despretensioso conto. O resto eu vou rezar.
E não fomos felizes para sempre.
E... talvez... não seremos infelizes para sempre.

ZSF/SP-28-08-2006

segunda-feira, agosto 11, 2008

ZUCA

ZUCA



Zuca, talvez você nunca tenha imaginado que fosse capaz de despertar com tanta intensidade esta dor tão imensa e irremediável que é a saudade que sinto de você. (Depois sentirei dos outros, mas, agora, é de você.)

Você, tão meigo, tão doce, tão amoroso – e tão frágil, tão impotente!...

Você me lembra todo ser humano que, por mais forte e feroz que consiga se tornar, é, na verdade, o simples caniço de Pascal, e nem sempre pensante.

Zuca, meu caniço gentil até nos humildes pensamentos.

Lembro de você adolescente, dormindo no assoalho em colchão emprestado, longe da sua casa, tentando encontrar um caminho possível para a sua vida.

-- Zuca, como você vai encontrar trabalho se você não tem nem diploma do curso primário? Por quê?

-- Ora, fui reprovado por faltas, porque ia jogar bola com meu pai. O coitado não consegue acreditar que eu não posso ser jogador de futebol com meus “gambitos” e costelas. Sabe como me chamam no campo? Gafanhoto! Não seria melhor “louva-a-deus”? Ele não é mais magrinho, como eu? Mas meu pai não tem culpa, não, porque eu ia ser reprovado mesmo. Não sei como vocês conseguem estudar tanto! Eu não entendo nada de nada. Mas eu sei de gente que está ganhando muito bem e nunca estudou. É impossível que eu não encontre alguma coisa, não acha?

-- É, acho. Mas como você ia jogar futebol com seu pai? E o trabalho dele?

-- Ah! Ah! Ah! Ele é muito azarado! Está desempregado por causa de uma blusa de lã colorida, muito desenhada, que ele ganhou de presente.

-- Como assim?

-- Pois é, o pessoal da fábrica fez greve e arrastaram meu pai para um comício. Ele acabou ficando bem na frente quando um jornal tirou fotografia. Não deu para reconhecer ninguém – só meu pai, por causa do desenho da blusa. Foi despedido. Agora dizem que ele é comunista e ninguém quer dar emprego.

-- Como é que a sua família está se arrumando?

-- A Lola já tem doze anos e é boa manicure. As freguesas são pobres, mas ela ganha uns trocados. Minha mãe está bordando meias de homens para uma fábrica. Trabalha em casa, mas tem que carregar cada trouxa! Agora um amigo convidou meu pai para formar mesa de carteado... e nisso ele é bom. Quando ele consegue não jogar o seu, até que está levando algum para casa. Só espero que ele não vá preso, porque o lugar é clandestino. Se eu não conseguir emprego logo, meu pai vai me levar com ele. Até que jogo bem. A Yolanda e a Vilma ainda são muito pequenas, mas Deus não há de deixar faltar comida para nós. Na roupa a gente dá um jeito. Só que parece que ganhar roupa dá azar. Ah! Ah! Ah!

Zuca, você e seu pai, João, mal conseguiam levar para casa um pouco do dinheiro que ganhavam para “formar a mesa”, porque não resistiam à tentação de jogar “o seu”. Mas algum sempre sobrava e a família viveu até que todos se equilibraram em algum trabalho: até irem morrendo um a um.

Seu pai e sua mãe, Aurora, eram primos e diabéticos – a sentença de todos vocês já era conhecida quando nasceram.

Primeiro morreu seu pai, depois a Yolanda, muito jovem. Depois morreu você, o xodó da família. Mas, antes, você demonstrou como era possível ser tão frágil e fazer as pessoas se sentirem tão bem perto de você.

Na verdade, todos vocês viviam doentes, mas a doença até que os ajudava a viver. Dava a cada dia o seu objetivo: ir ao médico amigo ou ao pronto-socorro, tomar remédio, consolarem-se uns aos outros...

Até que um dia, deitado à força, você chorou para mim:

-- Na Santa Casa fizeram uma junta médica! Estou desenganado!

-- Mas Zuca! O que é uma junta médica hoje? Você tem diversas doenças, além das suas veias entupidas. Cada médico tem uma especialidade. É preciso que diversos médicos, cada qual especialista em alguma coisa, reúnam-se para chegarem a um diagnóstico, entenderem em conjunto o que você tem, para darem remédios adequados. O que quer dizer desenganado? Que você não tem cura? Ora, a Vilma tem asma e não tem cura, eu sofro do sistema nervoso (nem sei bem o que é isso) e não tenho cura. Cada um de nós tem alguma doença que não tem cura e continuamos a lutar para abrir os olhos todas as manhãs. Mas estamos todos desenganados! Um dia não vamos morrer, mesmo? Ora, seu malandro, você queria ficar para semente?

-- Ah! Ah! Ah!

Você consegue continuar vivendo com a dor nas pernas? É suportável? Dá para ficar sentado à mesa de jogo?

-- Dar... dá. Suporto, sim. Mas... (a mão passando nervosa pelo rosto, pelos cabelos) é que eu fiz a Nossa Senhora de Fátima a promessa de não jogar mais...

-- Ah, sei. E agora você fica imaginando como vai ser a vida. Mas você é malandro, mesmo. Essa promessa não vale! Como é que alguém pode prometer não trabalhar mais? Pois jogar não é o seu trabalho? Dizem até que, logo, logo, quando reabrirem os cassinos, você já vai ter emprego garantido! Essa promessa não vale, Zuca. Agora levante e venha tomar lanchinho conosco.

Sabe, Zuca, que eu não me lembro de ter visto você outra vez, porque sempre estava dormindo quando íamos em visita, pois a noite lá fora era o seu lugar quando estava acordado.

Até que você morreu. De repente.

Medo, onde está a sua vitória?

Depois, logo depois, morreu a Vilma e sua mãe disse que você veio buscá-la, porque não sabia ficar sozinho, nem no céu.

Depois morreu sua mãe e, por fim, a Lola morreu. Acredito que ela achou que ninguém mais precisava dela e ela não precisava mais suportar ausências.

Em um ano, como a nossa vida se esvaziou de amores!

Fizemos nascer outros amores, porque aqueles que ficaram precisavam de reforços para que todos possamos cumprir o nosso tempo sobre a terra.

Mas, Zuca, não posso compreender como não exista a palavra “saudade” em outras línguas, porque essa dor de ausência tão enorme e irremediável só pode ser suportada se tiver um nome.

Saudade, Zuca.



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ZS – SP/21/07/2004

segunda-feira, julho 28, 2008

A SEREIAZINHA

A SEREIAZINHA



Não uso meia fina de mulher. Não uso.
Não podem perceber? Vejam que escamas cobrem minhas pernas e destroem qualquer tecido gentil e impedem carícias as mais inocentes. Machucam.
Eu ando. Mas as pernas doem. Só posso dançar na ponta dos dedos.
Minha voz é um grasnido. Prefiro ficar muda. Nem saberia dizer tudo que carrego por dentro.
Por causa dele. Apenas. Talvez.
Eu fui avisada: somos de elementos diferentes. Não sobreviveríamos juntos. Só se ele me amasse. Ou se ele me escolhesse para companheira e fizéssemos amor como os humanos.
Sou quase humana: escamas... só nas pernas.
E elas desapareceriam se eu conseguisse uma alma.
E, se ele me beijasse, libertaria minha voz.
Mas ele ama quem ele escolheu.
É verdade que tenho uma opção: se eu os matasse – ou matasse esse amor – eu poderia ser gente de verdade. E ele seria meu – para sempre – prisioneiro afetivo: nunca mais poderia escolher.
Essa opção vem de uma carta-punhal que me entregaram para que fosse eu a mergulhá-la no sangue de ambos, sem que outros sujassem as mãos.
O que faço com a carta flamejante? Migalhas incendidas para alimentar o vento. Lá se vão!
Que se matem sem mim! Ou que sejam felizes nas horas do não sei!
Vou continuar como estou, vou ser espuma, vou ser filha do ar. E depois de mil anos terei alma e poderei voltar aos meus sonhos.
Com escamas? Sem voz?
Já não me importo mais.
Pedirei ao Infinito que me permita ajudá-lo a tecer almas e acender estrelas.
Talvez uma delas beije minha testa e nunca mais serei só.
-- / --

Zuleica Seabra Ferrari

segunda-feira, julho 14, 2008

OLHA A MENINA!

OLHA A MENINA!


Olha a menina. Olha! Olha a menina!
Por que não recolheram o lixo desse canto do quintal?
E agora, olha a menina ajoelhada bem no meio do lixo!
Como ela está tão quieta!
Ora, ela está de mãos postas, como a rezar.
Junto aos joelhos, há uma caixinha de madeira rústica, medindo dois palmos de sua pequena mão. Sobre a caixinha, um retalho de renda bege quase a cobri-la. Bem no centro, uma rosa cor-de-rosa murcha, sem haste. Formando um colar em torno da rosa, pérolas de papel prateado bem picado e emboladinho.
Olha a menina...
Ela esteve na igreja católica do bairro, onde foi rezada missa de sétimo dia pela alma de sua avó. Diziam-lhe que a avó adorava essa neta. A menina não se lembra do carinho da avó, doente por tanto tempo. A menina não se lembra de carinho. Mas pensa na beleza do altar, tão mais bonito do que a sua casa. E vidros coloridos nas janelas altas?! (“Vi-trais”) O silêncio, o tremular de velas... Tanta beleza pela alma da avó. Para a avó.
Não, menina! Esse altar, esses vitrais cheios de imagens, esse cheiro de incenso – tudo isso é pecado. (“Pe-ca-do? Coisa feia?!”) A vovó está dormindo até a ressurreição. É pecado rezar por uma alma que não existe. (“Ressurreição? Quando é?”) Então a menina vai ver de novo a sua avó? Sim. Um dia, mas se não rezar pela alma, porque ela não existe fora do corpo. (“Como?”)
Mas o que fazer com tanta beleza junto aos seus joelhos?
E se rezar um pouquinho só? (Que o pai não a veja!)
Olha a menina! Tire-a do lixo! Já!
Mas com muito, muito cuidado. Com toda a suavidade do mundo.
Não lhe diga que está ajoelhada sobre o lixo que pode lhe fazer mal.
Apenas tire-a daí, suavemente, pedindo-lhe a mãozinha tenra para ajudá-la a levantar-se. Delicadamente.
Cuidado! Cuidado! Não apague a beleza que ela está guardando e transformando na memória. Não lhe mostre, ainda, o contraste de rosas frescas e botões recém-nascidos. Depois ela vai poder amá-los sem trair a rosa do seu altar.
Aonde quer que vá, há de encontrar lixo sem fim – que quando ela for cientista ou quando for artista saberá purificar. Quanto à alma... É capaz que ela encontre a esperança, sim.
Cuidado! Essa menina merece uma chance – como todas as meninas que se ajoelham sobre o piso sujo da consciência de todos nós.
A menina merece uma chance – e ela a terá.
Olha! Olha a menina!




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Zuleica Seabra Ferrari – SP/ 06/07/2004

segunda-feira, junho 23, 2008

PELA ÚLTIMA VEZ

“Pela última vez, a última voz levada pelo vento...”

(Vovô Décio está muito quieto hoje. Triste ou zangado? É difícil ler um rosto semi-paralisado. Vou conversar um pouco com ele ... Acho que me trouxe um dos seus livros autografados. Não larga aquela pasta desde que cheguei. Mais tarde... ainda há tanto que fazer... Vou chegar tarde em casa outra vez e não vou ter dúvida em ler no rosto do Caio: será zanga, mesmo. Helenice também vai reclamar porque não terminei a bainha da saia... Droga. Estes velhos ainda compreendo que se irritem, mas meu pessoal está chorando de barriga cheia.)

“A amada se esquiva para não enfrentar os frutos da sua traição. Não há pressa. Morta a ilusão, tenho agora todo o tempo do mundo, porque me falta apenas um último gesto. Mas quero, apenas, pela última vez, ouvir a sua
voz”.


- Não levante a voz, Paulo. Não fale assim com seu avô. Você não percebe que ele não pode compreender totalmente o que você diz, o que ele fez, a minha atitude? Não fale assim. Ele não me arrancou nenhum pedaço. O que ele podia fazer além de roubar um pouco de contato humano? Você mesmo disse que sou parecida com sua avó quando era moça!

“Deixe que eu tome suas mão e sinta a força do seu peito, para reencontrar meus fantasmas sem temores. Será que vou saber suportar o que ainda me cabe na partilha dos sofrimentos e da solidão? Minha amada, tenho saudade da curva do seu seio e do calor do seu ventre. É pouco beijar seus lábios: aguça minha fome por lençóis ásperos e silêncios forçados porque é preciso não gritar de amor. É pouco. É muito pouco o dia de hoje para quem tem tão poucos amanhãs.”

- Velho indecente! Pensa que não vi o senhor agarrando minha mulher? Poesias eróticas, não é? Safadezas dissimuladas, isso sim. Pensa que eu não sei que o senhor tentou dormir até com minha mãe? A Idalina me contou tudo. Você a detesta porque ela é sua testemunha, não é? Testemunha de sua covardia. É cômodo o incesto, não? Filhinha trancada em casa, para não se expor a concorrentes mais moços e melhores do que o senhor! Sei muito bem porque a vovó exigiu que minha mãe fosse para o internato. Casa de Repouso! Repouso para mim que não o quero perto da minha mulher!



“Amada, não me expulse do seu leito. Bendito é o fruto de seu ventre – o que já temos e o que possamos vir a ter. Ainda que isto a perturbe e nos magoe. Não compreendo... Nossa filha tão meiga, sensível, apaixonada... Não se sente tocada pelo seu amor? Eu me lembro da sua mágoa em não poder niná-la quando era um bebezinho faminto. Idalina cuidou dela, roubou o afeto que deveria ser seu. Invejosa! Mentirosa! Instigou sua filha contra você, mas não foi capaz de ocupar de verdade o seu lugar de mãe. Eu fui pai e mãe de Berenice e ela não quis me repartir com você. Ciúmes! Agressões! Não é justo! Berenice no internato!... Como você quiser. Vou ser seu marido e sua cria. Você vai me ninar e vai ser minha mãe, minha mulher, minha filha. Todos os símbolos do Universo vou encontrar no calor do seu corpo e vou ficar completo. Quero ser tudo para você.”

- Papai, não quero ir para o internato. Idalina me disse que a mamãe exigiu isso porque ando agressiva e porque ela tem ciúmes. Ciúmes de mim, pai? Ela não tem tudo nesta casa? Tudo não é dela – até você? Quando ela estava mais doente, você lia poesias comigo, estudava comigo, jogava e brincava. Agora tudo acabou por causa dela. Mas eu prometo não brigar mais. Prometo me comportar. Como é que eu vou viver longe de você, da Idalina, dos meus cachorros, das minhas plantas? Eu fujo. Juro que eu fujo e me entrego ao primeiro cafajeste que encontrar na rua. Vou desonrá-los porque para mim é desonra vocês não me quererem mais aqui. Nunca mais vou chamá-la de mãe. Ela me trouxe ao mundo sem eu pedir e tudo que pedi ela não me deu ... e ainda me tira de você. Por que me acusam de um ciúme absurdo, quando minha revolta é tão justa?


- Vovô, Não leve a mal o seu neto. Ele é muito ciumento e o senhor ainda é um homem bonito. Ninguém diria que tem 60 anos, quanto mais oitenta. Eu o admiro muito por não deixar de lutar, mesmo depois do derrame. Está difícil, não é ? Ajudaria se tentasse conversar comigo também. Só com a fonoaudióloga é pouco. Mas respeito sua vaidade e conversaremos depois Temos muito tempo... Até suas mãos estão ficando fortes outra vez. Percebi outro dia... É sim. O senhor ainda vai casar-se outra vez para não precisar roubar carinho. Quem sabe aquela enfermeira bonitinha, parecida com a vovó? Não é bom o homem estar sozinho.

“Amada que me traiu partindo primeiro. Você podia adivinhar a dor da minha solidão? Eu a procuro em todas as mulheres, desde aquele dia. Mas hoje, cada um dos meus lentos passos me afasta para sempre de você, como afastei o fruto do seu ventre, por amor a você. Berenice! Quanto nos magoou com sua gravidez e sua morte precoce! “Colheitas nem maduras! ” Para você o consolo de nosso neto e para mim o ódio dele, que pensa que conhece meu coração. Ah, Idalina! Seu veneno atravessa gerações... Amada, haveria algum meio de ajudá-la? A você, a quem eu daria minha vida e cuja morte apressei sem querer?”


- Vovô Décio, seja bem-vindo! O senhor vai ajudar muita gente com sua presença aqui. Com sua coragem, sua luta pela saúde e pela vida, o senhor vai servir de exemplo a uma porção de gente mais nova e que já quer desistir. Eu sei que se o senhor não fala é apenas por vaidade. Mas eu sou enfermeira. Falar comigo é o mesmo que falar com a fonoaudióloga. Eu não crítico as falhas: apenas admiro sua conquista de cada dia. Vamos ter muito tempo, não é? Ainda vamos conversar muito. Quero ler suas poesias. Sua neta vai publicá-las, sabe? E vai fazer uma festa em casa para o senhor autografar livros para seus amigos. Sua letra já está firme de novo, eu sei. Suas mãos são fortes...


“Amada, quem ainda se lembra da cor de meus olhos e do calor das minhas mãos? Você estremecia. Onde posso reencontrar o som da sua voz? Não importam as palavras: quero apenas o som... o som... O que você dizia ? Não importa. Você me amava. Volta. Fique comigo amor. Sou de novo menino com medo do escuro e não há ninguém a quem possa confessar. Venha cobrir-me à noite, insistir para que eu coma, escolher minha roupa mais elegante e depois chorar de ciúmes. Eu quero seus ciúmes mais delirantes para que transborde a medida do meu valor.”


(Gostaria que todos aqui fossem como vovô Décio. Ele é tão altivo, orgulhoso, cuida de si próprio com tanta dignidade. Outros são tão difíceis! Difíceis para o banho, para a comida, para se vestir. Parece que apenas a raiva os mantém vivos. A neta disse que ele ainda é homem e que eu preciso me cuidar porque sou parecida com a mulher dele. Ora, até que um flertezinho pode ser bom para ele. Ajuda a lutar. Se todos morrerem logo, como fica a nossa fama? Manter o freguês vivo para manter o emprego!.)

- Vovô Décio, é hoje a grande noite! Como o senhor está bonito com essa roupa nova! Deixe arrumar a gravata. Nunca fui a uma noite de autógrafos. Precisa de gravata? Até que é bom que o senhor se vista assim, para variar um pouco. Mas nada de traição, ou não caso com o senhor depois do meu divórcio. Acho que estou com ciúmes porque não vou vigiá-lo esta noite.


“Eu quero seus ciúmes mais delirantes... para que eu volte a amar espelhos. Amada, o riso em sua boca compensa os destroços do meu rosto”...

- Que história é essa de perguntar porque vim buscá-la? Você é minha mulher e fica comigo cada vez menos tempo! Por que você demorou tanto outra vez? Não existe outra enfermeira para cuidar daquele velho? Não falo baixo coisa nenhuma. Só sua boca pode tampar a minha.

(Vovô Décio está olhando para cá. Ah, meu Deus! Não queria magoá-lo. Por que Caio tinha que me beijar aqui na frente de todo mundo? Bom, é melhor que seja assim. Acho que levei as coisas um pouco longe. Vovô Décio não está assim tão incapacitado e pode estar levando a sério. É melhor deixar clara a situação e beijar meu marido para o bem de ambos e para o meu sossego.)

“Esta é a noite mais longa, quando eu não quero a luz e tenho de aceitá-la. Quando não quero ninguém e sou obrigado a tantos abraços. Meu quarto pela última vez! Meu criado-mudo! Mudo! Mudo! Ninguém tocou em você, como eu gostaria que não tivessem tocado de novo na minha alma! Minha alma! Minha arma! Sim, minha arma.”


- Vovô Décio, é verdade que o senhor vai se casar outra vez?

‘Minha amada vestida de noiva, caminhando para mim ao som do órgão. Flores, luzes, sorrisos que eu perdi... Eu me lembro ou sonhei? Quanta gente para rir do meu último sonho e participar do meu último pesadelo.”

Notícia do jornal Folha de São Paulo – ANCIÃO ATIROU NA ENFERMEIRA. O ancião X , de 80 anos, assassinou com três tiros a enfermeira Y, de 42 anos , casada , e em seguida disparou a arma, um revolver calibre 38, apontado contra seu próprio coração, tendo morte instantânea. Os motivos do crime, seguido de suicídio, ainda não foram apurados pela polícia. A enfermeira prestava serviços em uma Casa de Repouso, na Av. O, que abriga idosos, entre os quais estava o ancião.

ZSF/

segunda-feira, junho 16, 2008

O ENTERRO DOS MORTOS

Autor: T.S.Eliot
Tradutor : Ivan Junqueira


Abril é o mais cruel dos meses, germinando
Lilases da terra morta, misturando
Memória e desejo, avivando
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
.
.
.

Que raízes são essas que agarram, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem,
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o
canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate,
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti quano amanhece
Ou de tua sombra vespertina se elevando ao teu encontro;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.
.
.
.
Cidade irreal,
Sob a neblina castanha de uma aurora de inverno,
Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos,
Jamais pensei que a morte a tantos destruíra.
.
.
.
O cadáver que plantaste no ano passado em teu jardim
Já começou a brotar? Dará flores este ano?
Ou foi a imprevista geada que o perturbou em seu leito?
Mantém o Cão à distância, esse amigo do homem,
Ou ele virá com suas unhas outra vez desenterrá-lo!
Tu! Hypocrite lecteur! - mon semblable - , mon frère!"